No
que consiste o princípio da competência-competência? Quais as implicações
práticas do aludido princípio?
Resposta:
Princípio da
competência-competência. A cláusula arbitral, uma vez reputada existente,
válida e eficaz, gera suas consequências, cuja análise se apresenta relevante.
Primeiramente, fica configurada a obrigação das partes em arbitrar as disputas
entre si, abrangidas pelo escopo da cláusula arbitral, visto que se trata de
uma obrigação contratual. Posteriormente, resta configurado o direito das
partes contratantes de terem suas disputas resolvidas por um meio de solução de
controvérsias privado, ou seja, o tribunal arbitral. Uma obrigação exigível e
um direito exequível são gerados reciprocamente. Ambas as vertentes mencionadas
decorrem da renúncia das partes em ver o mérito de suas controvérsias analisado
pela jurisdição estatal. Obrigam-se as partes a arbitrar e, por certo, geram um
direito à contraparte de exigir que a arbitragem seja levada a efeito quando do
surgimento de uma disputa.
É certo que de nada adiantaria
a vontade das partes de resolver seus conflitos futuros ou atuais fora do
âmbito jurisdicional se, a todo e qualquer momento, o Judiciário fosse chamado
a intervir. Mais do que isso, impedir que o juízo arbitral decida sobre a sua
própria jurisdição para processar e julgar conflitos de interesse a eles
submetido representaria, na verdade, uma outorga frágil e precária de poder ao
tribunal arbitral para decidir a disputa travada entre as partes contratantes.
Isso porque, a todo momento, o tribunal arbitral poderia ver seus atos
questionados ou sua autonomia restringida por decisões concomitantes ao
procedimento arbitral emanadas pelo Poder Judiciário: o mesmo Poder a que as
partes decidiram não recorrer quando tivessem um conflito de interesses. Pedro Batista
Martins, nesse ponto, destaca o caráter procrastinatório de alguns desafios à
jurisdição do tribunal arbitral, mediante alegação de nulidade do contrato ou
da cláusula arbitral:
No passado, não raro,
ocorriam casos em que a parte, para se afastar do compromisso assumido de
resolver as disputas por arbitragem, alegava, como fundamento da própria
controvérsia, a nulidade do contrato (ou mesmo do convênio de arbitragem), de
modo a viciar seu conteúdo e, dessa forma, obstruir os efeitos da cláusula
compromissória. Exatamente por situações como a relatada é que ganhou relevo o
princípio da competência-competência, que confere ao tribunal arbitral a
prerrogativa de decidir se ele, tribunal arbitral, tem competência para
processar a arbitragem que se pretende instituir, abrangendo-se nesta análise a
invalidade da convenção de arbitragem, sem a possibilidade de se buscar perante
o Judiciário, concomitantemente, um provimento que decrete eventual nulidade ou
que anule a convenção. Bertrand Ancel destaca o efeito positivo da
competência-competência, que permite aos árbitros apreciarem:
[...] eles mesmos a validade
de suas missões, isto é, a validade da convenção que os designa [...] a eles
mesmos é dado se pronunciar sobre suas competências a partir do momento que
esta é contestada por uma das partes que invoca a inexistência ou a nulidade do
acordo de arbitragem. De outro lado, pode-se levantar o argumento de que seria
contraproducente, e até mesmo contrário à realização de justiça, manter o curso
de um procedimento arbitral, cujo laudo final seria inexequível ou ineficaz.
Além disso, uma interpretação literal do artigo V, inciso XXXV, da Constituição
Federal poderia conduzir à conclusão de que uma lesão ou ameaça de lesão a
direitos, ainda que no bojo de procedimento arbitral escolhido pelas partes,
seria passível de apreciação imediata pelo Poder Judiciário, nada obstante o
próprio lesado ter reconhecido em um momento pretérito que não pretendia
recorrer ao Judiciário quando conflitos surgissem desta ou daquela relação
comercial.
Esse argumento ganha mais força quando a razão do
pedido de intervenção judicial é justamente a ausência de uma declaração de
vontade anterior de resolver o conflito futuro por meio da arbitragem. Isto é,
de que a convenção de arbitragem sequer existe. Incluem-se também nessa ideia
potenciais nulidades ou anulabilidades da convenção de arbitragem, que é
justamente o negócio jurídico que sustenta a instauração de uma arbitragem para
resolver um determinado conflito. Trata-se de questão a ser abordada mais
adiante. Em sede preliminar, é relevante mencionar que, em relação à obrigação das
partes de se submeterem ao juízo arbitral e ao direito gerado ao outro
contratante de exigir que a arbitragem seja instituída, o STJ já externou
posicionamento a respeito, no Recurso Especial n° 791.260-RS.
À época, o Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, que proferiu o acórdão desafiado no bojo do
referido recurso especial, havia manifestado entendimento de que o monopólio da
justiça estatal não poderia restar indisponível por conta de convenção
particular. Como consequência, haveria a possibilidade de qualquer das partes
recorrer ao Poder Judiciário, independentemente da manifesta opção pela
arbitragem. Assim, a arbitragem só seria válida para resolver litígios já
existentes. Todavia, o acórdão do Tribunal de Justiça gaúcho denotava claro
confronto aos textos da Lei de Arbitragem e da Convenção de Nova Iorque, sendo
posteriormente reformado em sede de recurso especial, o qual determinou a
obrigatoriedade do uso da arbitragem para solução da disputa entre os
contratantes, fazendo prevalecer o efeito negativo do princípio da
competência-competência.
Assim, a fim de assegurar a
jurisdição do referido tribunal arbitral para decidir sobre a sua própria
competência, materializou-se o princípio da “competência-competência”, como
resultado de um valor relevante para a evolução e consolidação do próprio
instituto da arbitragem. Acerca da relevância do mencionado princípio, pertinentes
são as seguintes considerações de Gary Born: É uma questão de central
importância para o processo arbitral a autoridade de um árbitro para considerar
e decidir disputas sobre a jurisdição do próprio árbitro, incluindo disputas
sobre existência, validade, legalidade e escopo da cláusula arbitral celebrada
pelas partes. O princípio da competência-competência é inerente à prática da
arbitragem, visto que sem ele seria muito difícil gerar credibilidade ao
instituto, pois haveria concorrência entre jurisdição estatal e privada a todo
tempo, abrindo portas a medidas procrastinatórias que deixam o direito material
em segundo plano.
Assim, a fim de se evitar
uma dupla e concorrente análise, e a possibilidade de conclusões discrepantes,
o princípio sub examine garante ao tribunal arbitral o poder de considerar e
decidir impugnações acerca da sua jurisdição. Esta decisão estaria sujeita em
momento posterior à revisão do Poder Judiciário. O princípio da
competência-competência, além de garantir a prerrogativa dos árbitros para
decidirem sobre sua própria competência, determina, de forma suplementar, que o
Poder Judiciário, quando diante de uma cláusula arbitral eficaz, deve enviar as
partes à arbitragem. O mencionado efeito suplementar – evitar a interferência
do Poder Judiciário em questões oriundas de contratos que contenham cláusula
arbitral – tem sido reiteradamente assegurado pelo STJ, conforme determinado no
Recurso Especial n° 712.566-RJ. Na ocasião, no seu voto, a Ministra Nancy
Andrighi fez a seguinte consideração:
Com a alteração do inc. VII
do art. 267 do CPC, a expressão ‘compromisso arbitral’ foi substituída por
‘convenção de arbitragem’ e, dessa forma, a eleição de cláusula arbitral passou
a configurar uma das causas para extinção do processo sem julgamento do mérito,
afastando, obrigatoriamente, a solução judicial do conflito.Portanto, o Poder
Judiciário deve direcionar as partes à arbitragem, por meio da extinção do
feito sem apreciação do mérito, nos termos do art. 267, VII, do Código de
Processo Civil, caso verifique a existência de convenção arbitral. Inclusive,
quando se tratar de cláusula arbitral, cabe ao juiz de direito reconhecer a
questão de ofício, conforme determinado no art. 301, IX, § 4° do Código de
Processo Civil, abstendo-se de adentrar o mérito do litígio.
Assim, ao extinguir uma
demanda relacionada à convenção arbitral, o Poder Judiciário determina às
partes que se submetam à arbitragem, uma vez que a jurisdição estatal deixou de
ser uma opção quando as partes assim declararam sua renúncia. Carlos Alberto
Carmona destaca que esta eficácia da convenção arbitral reconhecida pelo juiz
na decisão que extingue o processo sem apreciação do mérito é de cunho
temporário. Isso porque, ao remeter as partes à arbitragem, os árbitros terão a
possibilidade de examinar a fundo a validade da convenção, de modo que,
concluindo pela sua invalidade, colocarão fim à arbitragem, restando às partes
retornar ao Judiciário para buscar a resolução de seu conflito. Carmona,
igualmente, alerta para o risco de decisões conflitantes quando há pendência de
uma arbitragem, no bojo da qual a parte "A" alega invalidade da
convenção de arbitragem, e de um processo judicial no qual "A" demanda
"B", que, por sua vez, alega a
validade da convenção arbitral e pede a extinção do feito, com base no artigo
267, VII, do CPC. Nesse caso, o risco residiria no prosseguimento da
arbitragem, com base na validade da convenção, concomitantemente ao
prosseguimento do processo judicial, em virtude do reconhecimento pelo juiz da
invalidade da convenção. Carmona sugere que, para evitar decisões conflitantes,
e diante da impossibilidade de reunião dos procedimentos arbitral e judicial,
seja a arbitragem suspensa até decisão judicial acerca de sua própria
competência para processar e julgar o feito, exatamente porque seria o juiz
togado, ao final da arbitragem, o competente para analisar a questão da
validade da convenção, por meio da ação prevista no artigo 32 da Lei de Arbitragem.
Nesse particular, como a
solução proposta não consiste especificamente na hipótese de suspensão prevista
no artigo 25 da Lei de Arbitragem, é preciso que a pertinência da suspensão da
arbitragem ante a existência de processo judicial seja analisada com cuidado e
caso a caso. Evita-se, assim, situação similar àquela evidenciada no caso
europeu Transporti Casteletti v. Hugo Trumpy, que ficou conhecido como
"Italian Torpedo". No caso em comento, as partes haviam firmado um
contrato com cláusula de eleição de foro. Diante da iminência de ser demanda em
ação judicial por descumprimento contratual, a empresa Transporti Casteletti
adiantou-se e ajuizou uma ação anulatória do contrato, ignorando a cláusula de
eleição de foro. De acordo com a legislação processual europeia, Hugo Trumpy
não poderia ajuizar uma nova ação, mesmo no foro eleito pelas partes, haja vista
a ocorrência de litispendência (lis pendens).
Assim, as partes tiveram que
esperar até que o juiz da causa proposta por Transporti Casteletti declarasse
sua incompetência. Esta declaração, todavia, demorou dez anos. O caso ficou
conhecido como "Italian Torpedo", ou torpedo italiano, porque traduzia
a ideia de que uma das partes, ao se ver na iminência de ser demandada em
juízo, ou atacada pela contraparte, disparava seu torpedo primeiro, que
consistiria em ajuizar rapidamente uma ação em foro incompetente e de notória
lentidão, para ganhar tempo e adiar uma futura decisão contrária ao seu
patrimônio. É nesse ponto que reside certo receio: o ajuizamento de ações
desprovidas de fundamento na justiça comum, em foro com grande carga de
trabalho, para procrastinar o início da arbitragem e a resolução do conflito,
com um laudo final e vinculante. Por isso, entende-se que a suspensão da
arbitragem em decorrência de processo judicial deve ser vista com atenção e
cuidado, sendo tratada como exceção, e não regra.
Retornando à análise do
princípio da competência-competência, e em consonância com o entendimento
doutrinário, verifica-se que as legislações internacionais favoráveis à
arbitragem incorporaram este princípio ao seu ordenamento jurídico. A
legislação pátria não trouxe menção expressa ao princípio da
competência-competência, mas o entendimento doutrinário acena no sentido de que
o texto do art. 8, parágrafo único, da Lei de Arbitragem assegura a aplicação
do princípio. Seria o retrato de um valor inerente à própria aplicabilidade e
eficácia da arbitragem. A esse respeito, afirma Pedro Batista Martins: A
efetividade da cláusula compromissória, contudo, não seria atingida, ou, ao
menos, restaria extremamente vulnerada, sem o comando contido no art. 8° da
Lei. Em outras palavras, a autonomia da cláusula e a competência-competência
atuam como verdadeiras blindagens jurídicas àqueles que buscam se afastar da
obrigação assumida de submeter as controvérsias ao juízo arbitral.
A ideia que sobrevém é a de
que, além do artigo 8º da Lei de Arbitragem, concorrem na aplicação do
princípio da competência-competência os artigos 20 e 32 desta norma. O artigo
20 é claro ao dispor que as questões relativas a competência, suspeição ou
impedimento do árbitro, assim como invalidade ou ineficácia da convenção de
arbitragem, devem ser aduzidas na primeira oportunidade de manifestação, após
instituição da arbitragem. No caso de arguição oportuna de uma das matérias
aludidas, parece haver três caminhos possíveis. O primeiro seria o acolhimento
da suspeição ou impedimento, que acarretará a substituição do árbitro. O
segundo seria o acolhimento da incompetência do árbitro ou tribunal arbitral,
da invalidade ou da ineficácia da convenção arbitral, que ensejaria a indicação
do Poder Judiciário, em seu juízo competente, para processar e julgar a
controvérsia.
O terceiro caminho possível
está previsto no parágrafo 2º do artigo 20 da Lei de Arbitragem e diz respeito
à hipótese de não acolhimento, pelo juízo arbitral, das matérias arguidas em
sede preliminar. Nesse caso, a lei dispõe que a arbitragem terá prosseguimento
normal, sem prejuízo, todavia, de nova análise das questões ventiladas, por
parte do Poder Judiciário, quando da propositura da ação que visa à decretação
de nulidade do laudo arbitral, prevista no artigo 33 da mesma lei, incluindo-se
também a impugnação ao cumprimento de sentença, nos termos do seu artigo 33,
parágrafo 3º. Todavia, há quem possa argumentar que a Lei de Arbitragem nada
diz a respeito da hipótese de “não haver uma convenção de arbitragem”. Isto é,
neste caso não haveria invalidade da convenção, tampouco discussão acerca da
extensão da competência, mas sim inexistência da convenção.
Desta sorte, parece ainda
ser passível de debate se a parte prejudicada, diante de flagrante inexistência
da convenção arbitral, poderia pleitear perante o Poder Judiciário uma
declaração de inexistência da convenção e, por consequência, a impossibilidade
de submissão de um dado conflito ao juízo arbitral. Entendendo-se pela
possibilidade de se pleitear a declaração de inexistência, é necessário atentar
para a dinâmica do ônus da prova, que poderá pender para o lado do réu na ação
declaratória, que terá mais condições de provar a existência da cláusula do que
o autor que argumenta a sua inexistência. Provada a existência da cláusula,
remete-se à sequência prevista no artigo 20 da lei arbitral. Demais disso, é
relevante anotar que a autonomia dos tribunais arbitrais para decidir sobre sua
própria competência é amplamente reconhecida no cenário internacional, sendo
identificada recentemente em situação de interesse ao setor de produção de
energia no Brasil.
O caso abrange disputa entre
companhia brasileira de energia e grupo de engenharia americano. Em 2008, a
companhia brasileira iniciou arbitragem sob a regulamentação da Câmara de
Comércio Internacional, cujo objeto abrangia supostas infrações contratuais,
negligência e fraude na construção de sua usina termoelétrica. O grupo
americano finalizou a obra, realizou testes de desempenho e entregou a usina
termoelétrica no valor de US$ 210.000.000,00 (duzentos e dez milhões de
dólares), em setembro de 2002. A usina entrou em operação em 2006 e parou de
funcionar menos de um ano depois, devido à alegada quebra de um gerador. Também
foram citadas falhas estruturais não detectadas pelo grupo americano antes de
entregar a usina.
No ano de 2009, o grupo
americano conseguiu uma ordem judicial emanada da Corte do Distrito de Nova
Iorque, a fim de interromper o procedimento arbitral, sob o fundamento de que a
disputa estava prescrita, visto que o limite de seis anos definido pelo direito
material aplicável ao contrato havia transcorrido, devendo o termo inicial ser
contado a partir do momento que a companhia brasileira formalmente recebeu a
usina, em 2002. A decisão alarmou duas associações industriais que representam
99% do setor de produção de energia no Brasil, resultando na intervenção destas
no processo judicial como partes interessadas. O precedente da corte de Nova
Iorque poderia afetar outros contratos de engenharia, construção e licitação em
usinas de energia no país, visto que pontos como a regularidade dos testes de
desempenho e vícios ocultos influenciam na forma e no início da contagem do
prazo prescricional.
Assim, após propositura de
recurso pela companhia brasileira e associações da indústria de energia
brasileira, a Corte de Apelação do Segundo Circuito dos Estados Unidos da
América reverteu a decisão e determinou que a questão da prescrição deveria ser
decidida pelo próprio tribunal arbitral, em respeito ao princípio da
competência-competência. A decisão é favorável ao uso e ao correto
funcionamento do método privado de solução de disputas, restando demonstradas:
(i) a necessidade de não interferência do Poder Judiciário no mérito da
disputa; (ii) a prerrogativa do tribunal arbitral para decidir sobre sua
própria competência; (iii) garantia da vontade das partes e segurança na
manutenção do contratado, qual seja, resolver toda e qualquer disputa originada
da relação entre as partes pela via da arbitragem.