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segunda-feira, 17 de junho de 2013

QUESTÃO PRÁTICA DE DIREITO ARBITRAL - PRINCÍPIO DA COMPETÊNCIA-COMPETÊNCIA

No que consiste o princípio da competência-competência? Quais as implicações práticas do aludido princípio?

Resposta:
Princípio da competência-competência. A cláusula arbitral, uma vez reputada existente, válida e eficaz, gera suas consequências, cuja análise se apresenta relevante. Primeiramente, fica configurada a obrigação das partes em arbitrar as disputas entre si, abrangidas pelo escopo da cláusula arbitral, visto que se trata de uma obrigação contratual. Posteriormente, resta configurado o direito das partes contratantes de terem suas disputas resolvidas por um meio de solução de controvérsias privado, ou seja, o tribunal arbitral. Uma obrigação exigível e um direito exequível são gerados reciprocamente. Ambas as vertentes mencionadas decorrem da renúncia das partes em ver o mérito de suas controvérsias analisado pela jurisdição estatal. Obrigam-se as partes a arbitrar e, por certo, geram um direito à contraparte de exigir que a arbitragem seja levada a efeito quando do surgimento de uma disputa.

É certo que de nada adiantaria a vontade das partes de resolver seus conflitos futuros ou atuais fora do âmbito jurisdicional se, a todo e qualquer momento, o Judiciário fosse chamado a intervir. Mais do que isso, impedir que o juízo arbitral decida sobre a sua própria jurisdição para processar e julgar conflitos de interesse a eles submetido representaria, na verdade, uma outorga frágil e precária de poder ao tribunal arbitral para decidir a disputa travada entre as partes contratantes. Isso porque, a todo momento, o tribunal arbitral poderia ver seus atos questionados ou sua autonomia restringida por decisões concomitantes ao procedimento arbitral emanadas pelo Poder Judiciário: o mesmo Poder a que as partes decidiram não recorrer quando tivessem um conflito de interesses. Pedro Batista Martins, nesse ponto, destaca o caráter procrastinatório de alguns desafios à jurisdição do tribunal arbitral, mediante alegação de nulidade do contrato ou da cláusula arbitral:

No passado, não raro, ocorriam casos em que a parte, para se afastar do compromisso assumido de resolver as disputas por arbitragem, alegava, como fundamento da própria controvérsia, a nulidade do contrato (ou mesmo do convênio de arbitragem), de modo a viciar seu conteúdo e, dessa forma, obstruir os efeitos da cláusula compromissória. Exatamente por situações como a relatada é que ganhou relevo o princípio da competência-competência, que confere ao tribunal arbitral a prerrogativa de decidir se ele, tribunal arbitral, tem competência para processar a arbitragem que se pretende instituir, abrangendo-se nesta análise a invalidade da convenção de arbitragem, sem a possibilidade de se buscar perante o Judiciário, concomitantemente, um provimento que decrete eventual nulidade ou que anule a convenção. Bertrand Ancel destaca o efeito positivo da competência-competência, que permite aos árbitros apreciarem:
[...] eles mesmos a validade de suas missões, isto é, a validade da convenção que os designa [...] a eles mesmos é dado se pronunciar sobre suas competências a partir do momento que esta é contestada por uma das partes que invoca a inexistência ou a nulidade do acordo de arbitragem. De outro lado, pode-se levantar o argumento de que seria contraproducente, e até mesmo contrário à realização de justiça, manter o curso de um procedimento arbitral, cujo laudo final seria inexequível ou ineficaz. Além disso, uma interpretação literal do artigo V, inciso XXXV, da Constituição Federal poderia conduzir à conclusão de que uma lesão ou ameaça de lesão a direitos, ainda que no bojo de procedimento arbitral escolhido pelas partes, seria passível de apreciação imediata pelo Poder Judiciário, nada obstante o próprio lesado ter reconhecido em um momento pretérito que não pretendia recorrer ao Judiciário quando conflitos surgissem desta ou daquela relação comercial.

Esse argumento ganha mais força quando a razão do pedido de intervenção judicial é justamente a ausência de uma declaração de vontade anterior de resolver o conflito futuro por meio da arbitragem. Isto é, de que a convenção de arbitragem sequer existe. Incluem-se também nessa ideia potenciais nulidades ou anulabilidades da convenção de arbitragem, que é justamente o negócio jurídico que sustenta a instauração de uma arbitragem para resolver um determinado conflito. Trata-se de questão a ser abordada mais adiante. Em sede preliminar, é relevante mencionar que, em relação à obrigação das partes de se submeterem ao juízo arbitral e ao direito gerado ao outro contratante de exigir que a arbitragem seja instituída, o STJ já externou posicionamento a respeito, no Recurso Especial n° 791.260-RS.

À época, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que proferiu o acórdão desafiado no bojo do referido recurso especial, havia manifestado entendimento de que o monopólio da justiça estatal não poderia restar indisponível por conta de convenção particular. Como consequência, haveria a possibilidade de qualquer das partes recorrer ao Poder Judiciário, independentemente da manifesta opção pela arbitragem. Assim, a arbitragem só seria válida para resolver litígios já existentes. Todavia, o acórdão do Tribunal de Justiça gaúcho denotava claro confronto aos textos da Lei de Arbitragem e da Convenção de Nova Iorque, sendo posteriormente reformado em sede de recurso especial, o qual determinou a obrigatoriedade do uso da arbitragem para solução da disputa entre os contratantes, fazendo prevalecer o efeito negativo do princípio da competência-competência.

Assim, a fim de assegurar a jurisdição do referido tribunal arbitral para decidir sobre a sua própria competência, materializou-se o princípio da “competência-competência”, como resultado de um valor relevante para a evolução e consolidação do próprio instituto da arbitragem. Acerca da relevância do mencionado princípio, pertinentes são as seguintes considerações de Gary Born: É uma questão de central importância para o processo arbitral a autoridade de um árbitro para considerar e decidir disputas sobre a jurisdição do próprio árbitro, incluindo disputas sobre existência, validade, legalidade e escopo da cláusula arbitral celebrada pelas partes. O princípio da competência-competência é inerente à prática da arbitragem, visto que sem ele seria muito difícil gerar credibilidade ao instituto, pois haveria concorrência entre jurisdição estatal e privada a todo tempo, abrindo portas a medidas procrastinatórias que deixam o direito material em segundo plano.

Assim, a fim de se evitar uma dupla e concorrente análise, e a possibilidade de conclusões discrepantes, o princípio sub examine garante ao tribunal arbitral o poder de considerar e decidir impugnações acerca da sua jurisdição. Esta decisão estaria sujeita em momento posterior à revisão do Poder Judiciário. O princípio da competência-competência, além de garantir a prerrogativa dos árbitros para decidirem sobre sua própria competência, determina, de forma suplementar, que o Poder Judiciário, quando diante de uma cláusula arbitral eficaz, deve enviar as partes à arbitragem. O mencionado efeito suplementar – evitar a interferência do Poder Judiciário em questões oriundas de contratos que contenham cláusula arbitral – tem sido reiteradamente assegurado pelo STJ, conforme determinado no Recurso Especial n° 712.566-RJ. Na ocasião, no seu voto, a Ministra Nancy Andrighi fez a seguinte consideração:

Com a alteração do inc. VII do art. 267 do CPC, a expressão ‘compromisso arbitral’ foi substituída por ‘convenção de arbitragem’ e, dessa forma, a eleição de cláusula arbitral passou a configurar uma das causas para extinção do processo sem julgamento do mérito, afastando, obrigatoriamente, a solução judicial do conflito.Portanto, o Poder Judiciário deve direcionar as partes à arbitragem, por meio da extinção do feito sem apreciação do mérito, nos termos do art. 267, VII, do Código de Processo Civil, caso verifique a existência de convenção arbitral. Inclusive, quando se tratar de cláusula arbitral, cabe ao juiz de direito reconhecer a questão de ofício, conforme determinado no art. 301, IX, § 4° do Código de Processo Civil, abstendo-se de adentrar o mérito do litígio.

Assim, ao extinguir uma demanda relacionada à convenção arbitral, o Poder Judiciário determina às partes que se submetam à arbitragem, uma vez que a jurisdição estatal deixou de ser uma opção quando as partes assim declararam sua renúncia. Carlos Alberto Carmona destaca que esta eficácia da convenção arbitral reconhecida pelo juiz na decisão que extingue o processo sem apreciação do mérito é de cunho temporário. Isso porque, ao remeter as partes à arbitragem, os árbitros terão a possibilidade de examinar a fundo a validade da convenção, de modo que, concluindo pela sua invalidade, colocarão fim à arbitragem, restando às partes retornar ao Judiciário para buscar a resolução de seu conflito. Carmona, igualmente, alerta para o risco de decisões conflitantes quando há pendência de uma arbitragem, no bojo da qual a parte "A" alega invalidade da convenção de arbitragem, e de um processo judicial no qual "A" demanda "B", que, por sua vez, alega a validade da convenção arbitral e pede a extinção do feito, com base no artigo 267, VII, do CPC. Nesse caso, o risco residiria no prosseguimento da arbitragem, com base na validade da convenção, concomitantemente ao prosseguimento do processo judicial, em virtude do reconhecimento pelo juiz da invalidade da convenção. Carmona sugere que, para evitar decisões conflitantes, e diante da impossibilidade de reunião dos procedimentos arbitral e judicial, seja a arbitragem suspensa até decisão judicial acerca de sua própria competência para processar e julgar o feito, exatamente porque seria o juiz togado, ao final da arbitragem, o competente para analisar a questão da validade da convenção, por meio da ação prevista no artigo 32 da Lei de Arbitragem.

Nesse particular, como a solução proposta não consiste especificamente na hipótese de suspensão prevista no artigo 25 da Lei de Arbitragem, é preciso que a pertinência da suspensão da arbitragem ante a existência de processo judicial seja analisada com cuidado e caso a caso. Evita-se, assim, situação similar àquela evidenciada no caso europeu Transporti Casteletti v. Hugo Trumpy, que ficou conhecido como "Italian Torpedo". No caso em comento, as partes haviam firmado um contrato com cláusula de eleição de foro. Diante da iminência de ser demanda em ação judicial por descumprimento contratual, a empresa Transporti Casteletti adiantou-se e ajuizou uma ação anulatória do contrato, ignorando a cláusula de eleição de foro. De acordo com a legislação processual europeia, Hugo Trumpy não poderia ajuizar uma nova ação, mesmo no foro eleito pelas partes, haja vista a ocorrência de litispendência (lis pendens).

Assim, as partes tiveram que esperar até que o juiz da causa proposta por Transporti Casteletti declarasse sua incompetência. Esta declaração, todavia, demorou dez anos. O caso ficou conhecido como "Italian Torpedo", ou torpedo italiano, porque traduzia a ideia de que uma das partes, ao se ver na iminência de ser demandada em juízo, ou atacada pela contraparte, disparava seu torpedo primeiro, que consistiria em ajuizar rapidamente uma ação em foro incompetente e de notória lentidão, para ganhar tempo e adiar uma futura decisão contrária ao seu patrimônio. É nesse ponto que reside certo receio: o ajuizamento de ações desprovidas de fundamento na justiça comum, em foro com grande carga de trabalho, para procrastinar o início da arbitragem e a resolução do conflito, com um laudo final e vinculante. Por isso, entende-se que a suspensão da arbitragem em decorrência de processo judicial deve ser vista com atenção e cuidado, sendo tratada como exceção, e não regra.

Retornando à análise do princípio da competência-competência, e em consonância com o entendimento doutrinário, verifica-se que as legislações internacionais favoráveis à arbitragem incorporaram este princípio ao seu ordenamento jurídico. A legislação pátria não trouxe menção expressa ao princípio da competência-competência, mas o entendimento doutrinário acena no sentido de que o texto do art. 8, parágrafo único, da Lei de Arbitragem assegura a aplicação do princípio. Seria o retrato de um valor inerente à própria aplicabilidade e eficácia da arbitragem. A esse respeito, afirma Pedro Batista Martins: A efetividade da cláusula compromissória, contudo, não seria atingida, ou, ao menos, restaria extremamente vulnerada, sem o comando contido no art. 8° da Lei. Em outras palavras, a autonomia da cláusula e a competência-competência atuam como verdadeiras blindagens jurídicas àqueles que buscam se afastar da obrigação assumida de submeter as controvérsias ao juízo arbitral.

A ideia que sobrevém é a de que, além do artigo 8º da Lei de Arbitragem, concorrem na aplicação do princípio da competência-competência os artigos 20 e 32 desta norma. O artigo 20 é claro ao dispor que as questões relativas a competência, suspeição ou impedimento do árbitro, assim como invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, devem ser aduzidas na primeira oportunidade de manifestação, após instituição da arbitragem. No caso de arguição oportuna de uma das matérias aludidas, parece haver três caminhos possíveis. O primeiro seria o acolhimento da suspeição ou impedimento, que acarretará a substituição do árbitro. O segundo seria o acolhimento da incompetência do árbitro ou tribunal arbitral, da invalidade ou da ineficácia da convenção arbitral, que ensejaria a indicação do Poder Judiciário, em seu juízo competente, para processar e julgar a controvérsia.

O terceiro caminho possível está previsto no parágrafo 2º do artigo 20 da Lei de Arbitragem e diz respeito à hipótese de não acolhimento, pelo juízo arbitral, das matérias arguidas em sede preliminar. Nesse caso, a lei dispõe que a arbitragem terá prosseguimento normal, sem prejuízo, todavia, de nova análise das questões ventiladas, por parte do Poder Judiciário, quando da propositura da ação que visa à decretação de nulidade do laudo arbitral, prevista no artigo 33 da mesma lei, incluindo-se também a impugnação ao cumprimento de sentença, nos termos do seu artigo 33, parágrafo 3º. Todavia, há quem possa argumentar que a Lei de Arbitragem nada diz a respeito da hipótese de “não haver uma convenção de arbitragem”. Isto é, neste caso não haveria invalidade da convenção, tampouco discussão acerca da extensão da competência, mas sim inexistência da convenção.

Desta sorte, parece ainda ser passível de debate se a parte prejudicada, diante de flagrante inexistência da convenção arbitral, poderia pleitear perante o Poder Judiciário uma declaração de inexistência da convenção e, por consequência, a impossibilidade de submissão de um dado conflito ao juízo arbitral. Entendendo-se pela possibilidade de se pleitear a declaração de inexistência, é necessário atentar para a dinâmica do ônus da prova, que poderá pender para o lado do réu na ação declaratória, que terá mais condições de provar a existência da cláusula do que o autor que argumenta a sua inexistência. Provada a existência da cláusula, remete-se à sequência prevista no artigo 20 da lei arbitral. Demais disso, é relevante anotar que a autonomia dos tribunais arbitrais para decidir sobre sua própria competência é amplamente reconhecida no cenário internacional, sendo identificada recentemente em situação de interesse ao setor de produção de energia no Brasil.

O caso abrange disputa entre companhia brasileira de energia e grupo de engenharia americano. Em 2008, a companhia brasileira iniciou arbitragem sob a regulamentação da Câmara de Comércio Internacional, cujo objeto abrangia supostas infrações contratuais, negligência e fraude na construção de sua usina termoelétrica. O grupo americano finalizou a obra, realizou testes de desempenho e entregou a usina termoelétrica no valor de US$ 210.000.000,00 (duzentos e dez milhões de dólares), em setembro de 2002. A usina entrou em operação em 2006 e parou de funcionar menos de um ano depois, devido à alegada quebra de um gerador. Também foram citadas falhas estruturais não detectadas pelo grupo americano antes de entregar a usina.

No ano de 2009, o grupo americano conseguiu uma ordem judicial emanada da Corte do Distrito de Nova Iorque, a fim de interromper o procedimento arbitral, sob o fundamento de que a disputa estava prescrita, visto que o limite de seis anos definido pelo direito material aplicável ao contrato havia transcorrido, devendo o termo inicial ser contado a partir do momento que a companhia brasileira formalmente recebeu a usina, em 2002. A decisão alarmou duas associações industriais que representam 99% do setor de produção de energia no Brasil, resultando na intervenção destas no processo judicial como partes interessadas. O precedente da corte de Nova Iorque poderia afetar outros contratos de engenharia, construção e licitação em usinas de energia no país, visto que pontos como a regularidade dos testes de desempenho e vícios ocultos influenciam na forma e no início da contagem do prazo prescricional.


Assim, após propositura de recurso pela companhia brasileira e associações da indústria de energia brasileira, a Corte de Apelação do Segundo Circuito dos Estados Unidos da América reverteu a decisão e determinou que a questão da prescrição deveria ser decidida pelo próprio tribunal arbitral, em respeito ao princípio da competência-competência. A decisão é favorável ao uso e ao correto funcionamento do método privado de solução de disputas, restando demonstradas: (i) a necessidade de não interferência do Poder Judiciário no mérito da disputa; (ii) a prerrogativa do tribunal arbitral para decidir sobre sua própria competência; (iii) garantia da vontade das partes e segurança na manutenção do contratado, qual seja, resolver toda e qualquer disputa originada da relação entre as partes pela via da arbitragem.

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